Sociedade Brasileira de Pediatria reduz corte axilar para 37,5°C e reforça avaliação clínica centrada no estado geral da criança.
Agora, com a atualização das diretrizes da SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria) no documento “Abordagem da Febre Aguda em Pediatria e Reflexões sobre a febre nas arboviroses”, esse reflexo ganha nova forma. A entidade define como febre, em medição axilar, a temperatura igual ou superior a 37,5 °C, e não mais os usados até então (37,8 °C ou mais).
Mas essa alteração vai além de mudar um número, ela representa uma mudança de paradigma. A febre deixa de ser vista como vilã imediata e passa a ser interpretada como sinal, como parte da resposta corporal da criança, com atenção prioritária ao seu estado geral, à hidratação, à atividade, ao comportamento.
Abaixo, a reportagem desenha esse novo panorama da febre infantil, o que muda na prática, como os pais e profissionais devem agir, onde mora atenção extra e quais os erros mais comuns que devem ser evitados.
De onde vem essa mudança
Segundo o documento da SBP, a febre está entre as queixas mais frequentes nos atendimentos pediátricos, estimam-se que 20% a 30% das consultas tenham como principal sintoma a elevação térmica.
Entre as motivações da revisão, destacam-se:
- evidências de que crianças pequenas podem já manifestar quadros relevantes com elevações térmicas discretas;
- reconhecimento de que, sozinho, o valor numérico da temperatura não oferece previsibilidade de gravidade ou etiologia da doença;
- necessidade de reduzir a “febrefobia” — termo usado para descrever o medo exagerado dos pais diante de qualquer elevação térmica, que gera consultas e exames muitas vezes desnecessários.
A Dra. Patrícia Almeida resume: “Não basta olhar o termômetro; precisamos olhar a criança. A medição faz parte, mas o conjunto importa.” Essa frase sintetiza o novo foco.
Uso de antitérmicos: o que mudou
A nova diretriz da SBP sugere:
- Use antitérmico quando a criança com febre apresentar desconforto evidente, dor, irritabilidade, sono prejudicado, recusa alimentar.
- Em lactentes com menos de um mês, apenas paracetamol é indicado, respeitando a idade gestacional.
- A alternância entre antitérmicos (por exemplo, paracetamol seguido de ibuprofeno, ou vice-versa) não é recomendada, já que não traz benefício adicional, aumenta risco de erro ou superdosagem.
Além disso, em casos sem desconforto significativo, apenas observação, oferta de líquidos, ambiente confortável e monitoramento podem ser suficientes. Este é o novo entendimento, tratar a criança, não o termômetro.
Convulsão febril: abordagem para pais
O documento aborda também a convulsão febril, evento que gera grande angústia nos pais. Alguns pontos fundamentais:
- Ocorre mais comumente entre 6 meses e 6 anos de idade.
- Em geral é autolimitada, sem sequelas neurológicas.
- A ocorrência não depende exclusivamente da magnitude da febre, mas da predisposição individual.
- Usar antitérmico apenas para conforto, não para prevenção de convulsão.
- Em caso de convulsão: deite a criança de lado, afrouxe roupas, observe duração (>5 minutos exige atendimento de emergência).
O guia enfatiza: “Não há indicação de terapia profilática de antiepilépticos após convulsão febril isolada”. A orientação é tranquilizar, orientar e monitorar.
Educação familiar: essencial para a nova abordagem
Um dos pontos mais importantes da atualização é a necessidade de educar pais, cuidadores e profissionais da saúde para desconstruir mitos e medos a “febrefobia”.
Muitos cuidadores associam febre automaticamente a infecção grave ou a convulsão. Esse medo resulta em excesso de consultas, uso indiscriminado de medicamentos e ansiedade desnecessária. A SBP destaca que a febre não é doença, mas sinal de que o corpo está respondendo.
Para a pediatra entrevistada: “Se a criança está ativa, brincando, aceitando líquidos e reage bem ao ambiente, mesmo com 37,8 °C ou 38 °C, podemos observar com calma. Já uma criança com 37,5 °C e prostração ou respirando mal demanda investigação”.
Ela reforça: treinar a medição correta em casa, observar a criança e, sempre que dúvida persistir, procurar avaliação médica.
Em resumo: o que pais e cuidadores devem fazer
- Meça a temperatura com termômetro digital na axila, aguardando o tempo indicado.
- Se o valor for ≥ 37,5 °C, considere como febre segundo as novas diretrizes.
- Verifique como está o comportamento da criança: brinca? Come? Bebe? Está reativa?
- Ofereça líquidos, mantenha ambiente confortável, não agasalhe em excesso e evite automedicação.
- Use antitérmico apenas se houver desconforto significativo (irritabilidade, dor, sono ruim).
- Procure atendimento médico se: menos de 3 meses de idade; temperatura acima de 39,5 °C; sinais de desidratação ou alteração grave do estado geral; doenças crônicas ou imunossupressão associadas.
- Saiba que a febre sozinha não define gravidade nem etiologia. A observação clínica é essencial.
Impactos esperados e desafios
A nova norma da SBP promete alguns impactos positivos: detecção mais precoce de quadros que merecem atenção; redução de consultas e medicamentos desnecessários; empoderamento de pais e cuidadores com informação qualificada.
Por outro lado, há desafios:
- Educar ampla camada de pais e responsáveis que ainda associam qualquer febre a risco iminente.
- Garantir que profissionais de saúde disseminem a nova abordagem de forma clara e sem alarmismos.
- Evitar que o menor valor de corte (37,5 °C) seja usado mecanicamente para marcar “urgência” em todos os casos, sem considerar o contexto.
- Treinar cuidadores para usar corretamente o termômetro, interpretar o resultado e diferenciar entre simples elevação térmica e sinais de alerta reais.
A pediatra resume: “O valor de 37,5 °C não é o fim da história. É o início de observação com critério, não de pânico. A criança é mais que um número”.
A atualização da SBP marca uma virada na forma de pensar a febre infantil. Passa-se de uma abordagem centrada no termômetro para uma avaliação clínica mais abrangente, que considera a criança como um todo.
O novo valor de corte (37,5 °C na axila) serve de alerta, mas os reais guias de decisão continuam sendo a atividade, a hidratação, o apetite, a reatividade, além de sinais de risco específicos.
Para os pais e cuidadores, a mensagem é clara: meça, observe, compreenda, mas não se alarme automaticamente.
Para os profissionais de saúde, o chamado é à clareza na comunicação, à educação da família e ao uso criterioso de medicamentos. A febre deixa de ser vilã e assume seu lugar legítimo: sinal de que o corpo está reagindo e merece ser interpretado, não necessariamente combatido.










